domingo, 23 de março de 2014

A vidente eslovaca

 Ulisses estava cansadíssimo após sua longa caminhada pelos fumegantes quarteirões de Cascadura em pleno verão. Sua meta era a casa de sua querida priminha Leonor. Mas na verdade não era só calor a principal causa do seu aniquilamento. O que o incomodava muitíssimo era a adaptação a sua nova perna de pau.

  Mal chegando, pediu um copo d’água frappé em proteção à sua abaritonada voz, que se apresentaria na próxima semana cantando na missa de Natal na catedral de sua cidade, Cantagalo. Atendido, fez outro pedido à única pessoa presente na casa naquele momento: sua querida tia Lola, ex-freira e quase viúva do seu maior amigo, o quase desaparecido tio Candinho. Na verdade, tia Lola pouco ficava em casa. Suas viagens pelo Brasil eram constantes, sempre secretariando o sisudo Padre Pereira à procura de tio Candinho. Até em Búzios e Campos do Jordão o padre e sua abnegada secretária o procuraram. Imaginem a exaustão do padre e da ex-freira. Sempre que os encontrava, ouvia: “A esperança é a última que morre”. Na verdade, o puríssimo Cândido desapareceu no final do século passado. Pobre tia Lola... Como devia estar triste. E o nosso santo e dedicado Padre Pereira? Este então deve estar sofrendo muito. O seu abatimento é visível nas olheiras negras das noites insones, consolando a casta tia lola...

  Mas basta de tristeza dos outros.

  Ulisses, munido de papel e lápis, deixa o seguinte bilhete para ser entregue a sua estimada e confidente prima Leonor:

  Preciso de sua bendita opinião.
  A depressão tem sido uma terrível companhia nos últimos meses. Vivo colhendo os frutos podres do meu pomar amoroso. Sei que compreendes como se fosse uma irmã de caridade. Prima, lembras daquela espírita eslovaca com quem certo dia me consultei? Na ocasião aconselhou-me a arriscar minha vida numa cidade de colonização açoreana no Sul do Brasil. Na época não consegui coragem. Mas agora a solidão é tanta, que segurei a predição. Espero que opines favoravelmente. A eslovaca disse qe o além me garantia uma boa nova vida: fartura alimentar, motivação para pintar e maravilhosos encontros literários na livraria de dona Gracinha. Mas, prima! O que mais me fez ficar excitado foi ela dizer que um encontro flamejante estava à minha espera. Sabes com quem? Com uma esbelta e rica portuguesa, natural da Ilha da Madeira e dona de uma sensual perna de pau...

Fernandinho Azul & Vinho
                                                                                                                           8.8.2008

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